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sexta-feira, 5 de julho de 2013

Somos todos nobres… e servos!

Somos todos nobres… e servos!

A matemática tem seus raciocínios curiosos e utilidades, por vezes, desconhecidas, porém, muito práticas. Neste caso, trata-se de provar que todos descendemos de D. Afonso Henriques ou de Carlos Magno ou de Maomé... 

Somos todos nobres… e servos!

Eu descendo de D. Afonso Henriques. O leitor também. E também de qualquer servo da gleba do séc. XII. Todos os europeus descendem de Carlos Magno e de Maomé. E todos os seres humanos vivos descendem de Confúcio ou Nefertiti. E também de qualquer escravo do antigo Egipto. São as surpresas da matemática da genealogia.
Por Jorge Buescu



Muito prazer, caro leitor. Embora não nos conheçamos pessoalmente, somos primos – na pior das hipóteses em 34º grau. E ambos temos uma linhagem altamente aristocrática: descendemos em linha directa da casa real da Fundação da nacionalidade. Sim: D. Afonso Henriques é o nosso 34º avô por via directa.

Mas, a nossa distinção genealógica não se esgota aqui, muito pelo contrário: somos também descendentes de todas as casas reais europeias anteriores ao Séc XII, e descendemos directamente de Carlos Magno ele próprio ou do profeta Maomé. E ainda de Nefertiti ou de Confúcio.

Orgulhoso da sua ilustre e aristocrática ascendência? Já sente o seu sangue mais azul, agora que tem a certeza da sua ascendência altamente aristocrática? Então considere as seguintes afirmações, também elas verdadeiras. Não há rigorosamente nada de especial consigo ou comigo. É uma inevitabilidade matemática: todos os portugueses vivos em 2004 descendem directamente de D. Afonso Henriques. Isto é verdade para mim, para o leitor ou para um perigoso marginal preso por tráfico de droga.

Muito pior: não só não há nada de especial em relação a nós enquanto descendentes como não há nada de especial com D. Afonso Henriques enquanto ascendente. Isto é: qualquer português hoje vivo, em particular um leitor deste artigo, é descendente não apenas de D. Afonso Henriques como de qualquer outro português vivo no séc. XII cuja linha de descendência não se tenha extinguido. Portanto, caro leitor, também há más notícias: além da nossa linhagem real, somos todos descendentes de todos os miseráveis servos da gleba do séc. XII. Continua orgulhoso?

Pior ainda: o mesmo argumento mostra que qualquer europeu hoje vivo é descendente directo de Carlos Magno, Carlos Mardel, Clóvis ou mesmo Maomé. Como, na verdade, também de qualquer outro europeu vivo à data destes, cuja linha de descendência não se tenha entretanto extinguido. Este mesmo argumento à escala mundial mostra que todos os seres humanos hoje vivos são descendentes de Confúcio ou Nefertiti.

Se isto lhe parece estranho, considere o seguinte pensamento arrepiante, quase inacreditável. Dentro de mil e quinhentos anos, das duas uma: ou a sua linha de descendência se extinguiu ou … todos os seres humanos nessa altura vivos serão seus descendentes! O leitor terá então literalmente dezenas de milhar de milhões de netos (já imaginou o que seria o Natal em Família?).

A explicação de todos estes factos bizarros, à primeira vista quase inacreditáveis, está em recentes resultados matemáticos relativos à Matemática das genealogias. No entanto, a razão matemática de fundo é muito simples e básica, sendo perfeitamente compreensível por qualquer aluno do Secundário: o crescimento exponencial do número de ascendentes.

Comecemos por uma observação indiscutível: todos nós temos um pai e uma mãe – isto é, dois ascendentes de primeira geração. Significa isto portanto que temos quatro avós, oito bisavós, etc. Em geral, cada um de nós possui 2n ascendentes de geração n.

Tomemos ao acaso um cidadão português qualquer, designando-o, digamos, por FM. Façamos então o modelo mais básico possível para a ascendência de FM. Suponhamos , para simplificar, que uma geração demora em média 25 anos.

Assim, FM terá 210 = 1024 ascendente de 10ª geração (bi-tetra-tetra- avós), que viveram há 250 anos. Na 20ª geração, que corresponde ao descobrimento do Brasil, terá mais de um milhão de ascendentes (220 = 1.048.576). E terá mil milhões de Milhões de ascendentes de 30ª geração. Isto passa-se há 750 anos. O tempo de D. Afonso Henriques, digamos 1143, corresponde à 34ª geração, e a árvore genealógica de FM tem nessa altura 234 ascendentes – mais de 17 mil milhões de pessoas – ou seja, quase o triplo da actual população da terra, e superior ao número total de seres humanos que já passaram pela Terra desde o aparecimento do Homo Sapiens!

A conclusão é uma inevitabilidade matemática: a árvore genealógica de FM não é uma árvore – é um novelo. Os caminhos de FM até aos seus ascendentes de 34ª geração têm de se auto-intersectar, porque muitas das 17 mil milhões de pessoas vão coincidir. Portugal teria qualquer coisa como 1 a 2 milhões de habitantes no tempo de D. Afonso Henriques, pelo que neste caso as auto-intersecçõ es “enrolam” as árvores genealógicas com coalescências de um factor de 1000 na 34ª geração.

Qual é a probabilidade de um ascendente masculino na 34ª geração de FM ser D. Afonso Henriques? Fazendo a pergunta para um ascendente concreto, digamos o pai do pai do pai … (34 vezes por linha paterna), essa probabilidade é evidentemente baixa. Suponhamos que este 34º avô pode ser, com igual probabilidade, qualquer um dos cerca de um milhão de homens vivos em 1143. Então a probabilidade deste senhor ser D. Afonso Henriques é uma num milhão. Dito de outra forma, a probabilidade de este 34º avô de FM não ser Afonso Henriques é 0,999999

A questão é que FM não tem apenas UM 34º avô homem: tem exactamente 233. Para FM não descender de D. Afonso Henriques é necessário ( mas nem sequer suficiente; ver abaixo) que nenhum destes 233 avôs seja Afonso Henriques. Considerando independência dos acontecimentos, e como 233 = 8.589.934.592 essa probabilidade é

P= (0,99999)8.589.934.592

Ou seja, cerca de 10-3731



Não é impossível FM não ser descendente directo de D. Afonso Henriques. No entanto, isso tem probabilidade absurdamente ridícula: ocorrerá uma vez em 103731 , que é 1 seguido de 3731 zeros. Como é fácil perder a noção da ordem de grandeza destes números, pode ser útil a seguinte comparação. Esta Probabilidade é menor do que a probabilidade de ganhar 522 vezes seguidas no totoloto. Ou seja, é mais provável jogar uma a posta e ganhar o 1º prémio no Totoloto todas as semanas durante dez anos do que D. Afonso Henriques estar fora da linha de ascendência de FM!

Poderia objectar-se que este modelo simples não leva em conta diversos fenómenos, de que são exemplo mais óbvio os migratórios. É verdade: obviamente Portugal não esteve de fronteiras fechadas durante 850 anos. Por exemplo, o meu pai era romeno, pelo que metade da minha árvore genealógica em princípio nada terá que ver com D. Afonso Henriques. Parece um corte radical: metade da árvore genealógica é para esquecer.

No entanto, devido ao crescimento exponencial dos antecessores o efeito desta anomalia é apenas atrasar o fenómeno uma geração, ou seja 25 anos (como no célebre problema dos nenúfares que cobrem um lago em trinta dias e se pergunta em que dia o lago estará meio coberto - supondo que a área aumenta todos os dias para o dobro). No meu caso pessoal, posso afirmar que é mais provável ganhar o Totoloto “apenas” todas as semanas durante cinco anos do que não descender directamente de D. Afonso Henriques. Portanto, eu e o FM, somos primos, na pior das hipóteses, em 34º grau, através do nosso querido avô comum Afonso Henriques.

O mesmo argumento mostra que passar de Portugal de D. Afonso Henriques para o Mundo inteiro é feito com meia dúzia de gerações. Assim, cálculos em tudo análogos mostram que a probabilidade de um qualquer europeu não descender por via directa de Carlos Magno é da ordem de 10-15000 . É mais fácil ganhar o Totoloto todas as semanas durante 320 anos. Portanto, todos os europeus vivos descendem da maior casa real europeia, a dos Francos de Carlos Magno.

E quanto mais para trás melhor: Maomé, Clóvis… a única exigência é partir de alguém que comprovadamente tenha deixado descendência viva, isto é, cuja linha de descendência não se tenha extinguido. A escolha de Carlos Magno, ou Maomé, ou Clóvis, é irrelevante – a não ser neste aspecto. Isto significa que todos os europeus actualmente vivos são descendentes de todos os europeus vivos no séc IX cuja linha de descendência não se tenha quebrado. Quer dizer: os portugueses são tão descendentes de Afonso Henriques como de qualquer servo da gleba seu contemporâneo.

Analogamente, passar para o Mundo inteiro empurra o cálculo uma geração mais para trás. Assim, todas as pessoas no Mundo são descendentes de Confúcio ou Nefertiti. E note-se que estamos apenas a considerar ascendência directa de pais para filhos, não alargada a tios ou por afinidade!

O pequenino modelo de brincar apresentado é evidentemente muito grosseiro para ser levado cientificamente a sério. Contudo, foram recentemente publicados modelos matemáticos probabilísticos desenvolvidos pelo matemático Joseph Chang, da Universidade de Yale, que trabalham as questões mais delicadas com as ferramentas probabilísticas dos processos de Markov. O que estes modelos têm de especial é considerarem a ascendência “genealógica” a partir de dois progenitores, e não apenas por via de um progenitor, como nos modelos clássicos(Wright- Fisher).

Pode parecer estranho ao leitor que os modelos clássicos só levem em conta um progenitor, não os dois. De facto, eles são sobretudo utilizados em Genética; e, devido à enorme complexidade das questões da hereditariedade sexuada (por exemplo, o DNA de um avô pode estar totalmente ausente no neto), eles são utilizados em condições em que não existe recombinação: por exemplo, a transmissão do cromossoma Y por via paterna, ou a transmissão do DNA mitocondrial por via materna. Assim, nos modelos clássicos há apenas um progenitor que “doa” todo o material genético. É assim que se atinge, por exemplo, a “Mãe Universal” conhecida por “Eva Mitocondrial” (originadora do DNA mitocondrial que todos transportamos) .

É claro que em qualquer tipo de modelo fazem sentido perguntas como”dada uma população com n indivíduos, quantas gerações é preciso andar para trás para se encontrar um antecessor comum?”. Um tal indivíduo é conhecido como um antecessor comum (AC) da população. Por exemplo, D. Afonso Henriques é um AC da população de Portugal, e Carlos Magno é um AC da população europeia. Uma pergunta ligeiramente diferente é a de encontrar o mais recente antecessor comum (MRAC) da população. Por exemplo, D. Afonso Henriques é um antecessor comum da população portuguesa, mas com grande probabilidade haverá um AC mais recente. O mais recente de todos é o MRAC.

Em modelos de tipo clássico, uniparentais, cada elemento da população tem um antecessor na geração n. Este facto origina, como talvez o leitor já suspeite, uma enorme diferença em relação às respostas fornecidas às perguntas acima. Em modelos clássicos, uniparentais, pode mostrar-se que uma população de dimensão n, em média, tem um MRAC(“Eva mitocondrial” ) na geração 2n. Por exemplo, a “Eva Mitocondrial” da população portuguesa (se tal fizesse sentido, o que claramente é falso) teria ocorrido há 20 milhões de gerações.

Já para um modelo genealógico, biparental, a situação é radicalmente diferente. Joseph Chang mostra dois resultados fundamentais: Numa população de dimensão n “suficientemente grande”, (1) o número de gerações necessárias para atingir um MR-AC é log2 n; (2) os elementos da população na geração (contada da frente para trás) G(n) = 1,77 log2 n ou são Antecessores Comuns de toda a população, ou a sua linha se extingue.

É interessante aplicar a segunda parte deste Teorema de Chang à população portuguesa. Com n = 10.000.000, actual população de Portugal, obtemos G(n) = 41,15. Para jogarmos pelo seguro, tomemos G(n) = 42 gerações correspondentes a 1050 anos. Isto significa que, para qualquer habitante do “Portugal” de 950 d.C. se tem a seguinte dicotomia: ou a sua linha de descendência se extinguiu, ou então é um Antecessor Comum de toda a actual população portuguesa.

Ainda mais intrigante é virar o argumento ao contrário. De acordo com as projecções das Nações Unidas, a população mundial estabilizará nos 12 mil milhões a partir do ano 2200. A geração crítica G(n) correspondente ao Teorema de Chang é 59,2; digamos 60 por segurança. Ou seja: dentro de 60 gerações, ou cerca de 1500 anos, eu e o leitor pertencemos à geração G(n). A partir daí, ou a nossa linha de descendência se extinguiu, ou cada um de nós é um Antecessor Comum de toda a população mundial. Todos os seres humanos serão nossos 60ºs netos! É como se cada um de nós estivesse neste momento no vértice de uma gigantesca ampulheta genealógica.

Poderá perguntar-se: se todos comprovadamente descendemos de qualquer pessoa suficientemente distante que tenha deixado descendência, qual é o interesse da genealogia? De facto, as raízes de todos nós estão na mesma árvore. Mas cada caminho para o nosso passado comum é único; a reconstrução desse caminho - uma penosa ascenção pela nossa árvore de ascendentes, conjugada com a exploração dos descendentes do “alvo” que se pretende atingir - é já por si uma recompensa. O matemático português que nos chamou a atenção para os trabalhos de Chang, por exemplo, conhece por este processo a (ou talvez uma) sua descendência directa do profeta Maomé e de Clóvis, rei dos Francos.